As duas interjeições que mais escuto quando apresento o conceito de Alimentação Natural Crua para pets, são:
“Mas ossos de galinha crus não são perigosos?” e “Carne crua? Mas e as bactérias? Meu gato não vai adquirir vermes?”
Sobre os ossos, creio que esclarecemos bastante anteriormente. Vamos conversar sobre as famigeradas bactérias e parasitos que o consumo de carnes e vísceras cruas pode transmitir e como minimizar seu risco.
Bactérias
Bactérias foram os primeiros organismos vivos a surgir na Terra, são trilhões dentro do nosso corpo e estão por toda parte, independentemente dos nossos esforços para controlá-las. Existem bactérias boazinhas e bactérias vilãs. As bactérias do bem defendem o organismo de agentes causadores de doenças, auxiliam na digestão de alimentos (lembra dos lactobacilos?) e até atuam potencializando os efeitos de alguns medicamentos.
E existem as bactérias patogênicas, as vilãs. Dando nomes aos bois: Salmonella ssp, Escherichia coli, a Campylobacter jejuni, e outras, que podem causar diarreia, vômitos e infecções em outros órgãos. Em seres humanos, particularmente, ingerir alimentos contendo essas bactérias como essas pode causar um estrago e tanto.
Em cães e gatos, felizmente para eles, a história é bem diferente. Em gatos, infecção comprovada por salmonela é um evento raríssimo. Esses nossos carnívoros de estimação possuem no seu trato digestório barreiras contra bactérias que nós não temos. Faz sentido, afinal, canídeos e felinos passaram milênios vivendo de carne crua no ambiente natural. Lobos, coiotes e chacais traçam até carcaças encontradas em avançado estado de decomposição, sem prejuízo à saúde. Como eles conseguem?
Chegando ao estômago a carne crua encontra um suco gástrico cujo pH atinge 1.0 – ou seja, extremamente ácido, capaz de derreter ferro. O pH suco gástrico humano, para efeito de comparação, fica entre 4.0 e 4.5. É a primeira importante defesa anti-bactérias. Carnes, vísceras e ossos passam horas embebidos nesse líquido. Se alguma bactéria resistir à passagem pelo estômago, vai encontrar dificuldade para se fixar no intestino.
Isso, porque o intestino de cães e gatos é super curto, perfeito para uma passagem rápida dos alimentos. A digestão do gato, por exemplo, dura meras 12 horas – a nossa leva pode durar 35 a 55 horas.
A digestão da proteína é tarefa do estômago, que é protegido pelo suco ácido, e quando o alimento atinge o curto intestino rumo à trajetória final, a bactéria não tem tempo de se alojar.
E não se esqueça do sistema imunológico desses animais, extremamente atento a bactérias. Estudos mostram que mesmo pets que consomem apenas ração podem eliminar salmonela nas fezes. De onde eles estão adquirindo essas bactérias se comem somente ração? Do hábito de serem pets, oras. De lamberem patas, cumprimentar-se cheirando o traseiro, caçarem insetos, aves, fuçarem lixo, rolarem em cocô etc.
Como é que esses pets não estão adoecendo, então, se apresentam bactérias vilãs no intestino? Pois é. Esta é a diferença entre ter o microorganismo no corpo, quietinho, devidamente controlado pelo sistema imune, e desenvolver a doença. São duas situações diferentes.
Você sabia que toda vez que a descarga do vaso sanitário é acionada, uma nuvem de coliformes fecais (bactérias intestinais de todos os usuários daquele banheiro) fica pairando no ar por alguns instantes? Contamina, entre outras coisas, a sua escova de dentes? (não adianta fazer careta…) Você, seus filhos e seu pet podem estar no banheiro quando isso ocorre. E não ficam, necessariamente, doentes. Ficam?
Para uma semente germinar não basta que esteja íntegra, viável. O terreno precisa estar fértil, receptivo e oferecer condições ótimas para ela germinar. O nosso corpo e o dos pets funciona da mesma forma. Para cães e gatos saudáveis, imunocompetentes, a salmonela do ovo não é nada. Nem a campilobacter da carne crua de frango. Essas “sementes” não germinam se o animal estiver saudável. AN é uma dieta que aumenta as defesas naturais, tornando os pets cada vez mais resistentes em um fascinante círculo de saúde.
Minimizando riscos
Alimentos crus podem veicular algumas bactérias e causar doenças, é verdade. Mas esse risco existe também nos alimentos industrialmente processados ou cozidos na sua casa. Pouca gente sabe disso, mas embora seja possível matar bactérias e fungos com calor, as toxinas que alguns desses organismos produzem e que podem causar doenças como o botulismo continuam ativas.
Em tempo, vou abrir um parêntese para abordar rapidamente o botulismo, uma grave doença que resulta em paralisia muscular progressiva. Este mal é causado por ingestão de alimentos contaminados com esporos da bactéria Clostridium botulinum, que se desenvolve em alimentos hermeticamente fechados, sem oxigênio. Logo, não se trata de um risco associado a oferta de dietas cruas, ao contrário do que muita gente pensa.
Não dê embutidos ou comidas em conserva para seu pet, não permita que ele fuce o lixo e sirva somente carnes frescas, com boa aparência e compradas em estabelecimentos de confiança. Dessa forma, o risco do peludo adquirir essa doença terrível será mínimo.
Em países como os Estados Unidos e o Canadá, onde os alimentos comerciais para pets são devidamente fiscalizados, são frequentes os recalls de rações por contaminação bacteriana (em geral por salmonela) e fúngica. Contaminação fúgica, aliás, é um risco das rações à base de milho que é bastante improvável em dietas caseiras.
O congelamento inativa vermes, como veremos na segunda parte desse artigo, mas não destrói bactérias. Bactérias congeladas apenas deixam de se multiplicar, o que já é interessante, mas uma vez descongelado o alimento elas retomam sua atividade.
O que fazer, então, para reduzir ao máximo os riscos da AN crua em relação às bactérias?
- Lave as mãos antes e depois da manipulação de carnes cruas. Se preferir use luvas. Prenda cabelos e não deixe animais perambularem na cozinha durante o preparo. Crianças e pessoas com imunidade comprometida não devem manusear carnes cruas.
- Tenha tábuas destinadas exclusivamente ao preparo das porções do pet. Troque-as de tempos em tempos.
- Antes de começar a preparar os alimentos, lave bem toda a sua “estação de trabalho”. Desinfete a pia e todos os utensílios com uma solução à base de 1 parte de cândida e 22 partes de água.
- Enquanto prepara um pacote de carne, deixe os demais na geladeira. Não dá pra brincar com comida crua nesse calorão tropical.
- A cada 1 hora lave as superfícies, facas e tábuas com a solução à base de cândida e água ou detergente neutro.
- Não lave carnes, vísceras e ossos, a não ser que haja sujeiras visíveis nessas peças. Lavar espalha bactérias sobre todos os alimentos. Despejar vinagre sobre as carnes não funciona para desinfetá-las.
- Antes de quebrar ovos, lave a casca com um pouco de detergente neutro e água. A salmonela fica superficialmente, na casca, e esse cuidado a elimina.
- Tão logo separe as porções, congele-as no freezer. Acondicione os potes ou saquinhos sem amontoá-los, permitindo um espaço entre eles para que o ar gelado os envolva e promova o rápido congelamento. Se tiver o sistema “quick-freeze” em seu freezer, acione-o.
Não ofereça Alimentação Natural caseira crua a gatos que estão com a imunidade baixa ou enfrentando alguma doença. Para consumir a AN crua com segurança, o bichano precisa estar bem, forte, plenamente capaz de digerir carnes e ossos crus e enfrentar bactérias.- O uso de antiácidos (remédios contra vômitos), como o nome diz, afeta a acidez do estômago tornando o pet menos hábil em debelar bactérias das carnes cruas. Tratamentos prolongados com corticoides e quimioterapia baixam a imunidade. Para casos assim, é preferível optar por AN cozida (para cães ou para gatos).
- Compre sempre alimentos frescos e de boa aparência, em lugares limpos, idôneos e próximos de sua casa – de modo que os itens, em especial as carnes, não fiquem expostos à temperatura ambiente por muito tempo.
- Sempre que possível compre carnes de animais criados em sistema orgânico ou caipira (criados soltos). São alimentos mais caros, mas muito mais saudáveis. A criação orgânica de frango, por exemplo, proíbe o uso de antibióticos na ração diária das aves. O uso de antibióticos gera resíduos indesejáveis na carne e origina linhagens de bactérias cada vez mais resistentes. E o fato de os animais serem criados soltos, além de mais humanitário e menos estressante, diminui consideravelmente a quantidade de bactérias em seus tecidos. Isso porque na criação orgânica e caipira os animais se dispersam, o que dificulta a disseminação de agentes infecciosos.
- Ao comprar carnes moídas, certifique-se de que o fornecedor higieniza adequadamente o interior do moedor entre uma moagem e outra ou a cada 1h. Moagem em aparelho mal higienizado é uma fonte de contaminação seríssima.
- Não descongele as porções sobre a pia. Retire do freezer a porção a ser oferecida com 12 a 18 horas de antecedência e deixe descongelar na parte inferior da geladeira, sobre um recipiente (para não sujar a prateleira com aquele caldinho e contaminar outros alimentos). Isso minimiza a proliferação bacteriana.
- Não deixe o alimento exposto ao ar livre por mais de 30 minutos. Se o pet não comeu, retire e guarde na geladeira para oferecer em até 24 horas. E não ofereça alimentos que estejam há mais de 48 ou 72 horas na geladeira. Nesse momento o bom senso é crucial.
E, para finalizar, gostaria de indicar a leitura desse artigo científico sobre a presença de bactérias em alimentos, publicado por pesquisadores da Universidade de São Paulo. Alguns destaques:
“A classificação do leite de vaca nos tipos A, B e C é baseada nos seus diferentes padrões microbiológicos. O leite tipo A é o que contém menos de 10.000 microrganismos/ml de leite cru, enquanto o B pode apresentar até 500.000 microrganismos/ml e o C, mais de 500.000 microrganismos/ml. Há algum tempo foi proposta a extinção da comercialização do leite tipo C, considerado inaceitável para o consumo humano tendo em vista os limites de contaminação microbiológica fixados atualmente.”
“(…) segundo a Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais, a temperatura nas estufas de conservação de salgadinhos (coxinhas, quibes, esfihas, empadas, pastéis, croquetes e tortas) deve ser superior a 70oC. Em Uberaba, MG, a medição da temperatura das estufas de salgadinhos em 12 bares e lanchonetes mostrou que 91,7% não atendiam a esse requisito, mantendo os alimentos em temperaturas menores. Numa das estufas, os salgadinhos eram mantidos à temperatura ambiente (27oC), num meio propício à proliferação de germes mesófilos, que se multiplicam em temperaturas amenas.”
“Ressalta-se que muitas hortas brasileiras não só são irrigadas com água contaminada por pesticidas e matéria fecal, mas até adubadas com dejetos humanos. Por isso, o consumo de verduras cruas é um importante meio de transmissão de doenças infecciosas e parasitárias na população.”
A análise de 77 chás de ervas vendidos em saquinhos para uso individual mostrou que boa parte estava em desacordo com as disposições legais para qualidade do produto. Dos chás de hortelã, 62,5% continham pelos de roedor, enquanto 71,4% dos chás de camomila apresentavam fragmentos de insetos.”
Parasitos (vermes)
Além de bactérias – que vimos acima que estão bem longe desse terror todo que despertam – carnes cruas podem transmitir alguns parasitos (vermes). Vamos entender quais são e como reduzir ao máximo o risco do seu peludo adquiri-los.
O texto abaixo foi adaptado por mim a partir do excelente artigo escrito pela veterinária norte-americana Karen Becker (leia aqui o original: )
Triquinose: doença transmitida pela carne crua ou mal passada de porco ou animais selvagens (em especial urso, javali e raposa) infectados pela larva Trichinella. De acordo com informações publicadas no site do FDA (US Food and Drug Administration), a Trichinella pode ser inativada pelo cozimento, congelamento ou irradiação da carne. Para não correr risco de transmitir Trichinella ao pet, congele carne suína por três semanas.
Obs: De acordo com o veterinário australiano Dr. Ian Billinghurst, criador da dieta BARF, o congelamento por 7 dias em freezer que atinge -20oC inativa esse verme. Contate o SAC do fabricante do seu freezer e verifique a temperatura que seu aparelho atinge.
Ainda segundo o Dr. Ian Billinghurst e outras fontes, a triquinose é uma doença cada vez mais rara graças às práticas modernas de criação de suínos. A infecção era mais frequente quando se criavam porcos nos fundos das casas com lixo e carne crua. Porcos oriundos de criações regulamentadas dificilmente apresentam esse parasito em sua carne.
Embora a carne de animais criados em regime caipira ou orgânico seja mais nutritiva e com menor teor de toxinas, tenha cuidado com carne crua de porco criado solto. Ele pode entrar em contato com uma espécie de Trichinella diferente, que resiste ao congelamento.
Portanto, nada de dar carne crua de porco selvagem, orgânico, caipira ou de procedência desconhecida. Nesses casos, o melhor é cozinhar.
Toxoplasmose: causada pelo protozoário Toxoplasma gondii, pode acometer a maioria dos mamíferos. Estima-se que entre 30 e 60% das pessoas em todo o mundo estejam infectadas com o Toxoplasma assintomaticamente. A infecção ocorre através da ingestão de oocistos presentes na carne crua, em especial, de veado, porco e cordeiro. Os oocistos são destruídos com cozimento ou com congelamento da carne por apenas 24 horas. Também se pode adquirir toxoplasmose pelo contato com fezes infectadas.
Então, para evitar essa doença, congele carne crua por pelo menos 24 horas antes de oferecer ao pet. E desinfete todas as superfícies e utensílios depois de preparar carnes cruas, tanto se faz se para seu pet ou para a sua família.
Intoxicação por salmão: o salmão selvagem e outros peixes que se reproduzem em água doce podem apresentar um parasito chamado Nanophyetus salmincola que pode hospedar um microorganismo similar a uma bactéria chamada Neorickettsia helminthoeca, que causa a intoxicação.
Congele salmão cru selvagem por pelo menos 7 dias no freezer ou cozinhe-o antes de servi-lo ao pet. Ambas formas de tratamento destroem a Neorickettsia helminthoeca.
Obs: felizmente, por um lado, a maioria esmagadora do salmão consumido no Brasil é criada em cativeiro, onde há controle de verminose. Por esse motivo a infecção por salmão é raríssima por aqui.
Difolobotríase: essa doença é causada pelo verme Diphyllobothrium latum, uma tênia que pode atingir 10 metros de comprimento no intestino, e é transmitida pelo consumo de peixe cru ou mal passado.
A boa notícia é que segundo a Anvisa o congelamento do peixe cru em freezer durante 24 a 48 horas antes de oferece-lo ao pet inativa esse verme. O cozimento seria outra forma de aniquilá-lo.
Teníase/cisticercose: são doenças causadas pelo mesmo parasito em fases diferentes do seu ciclo. A teníase acomete o indivíduo que consome carne – bovina ou suína crua ou mal passada – contendo cistos. E a cisticercose afeta quem ingere alimentos contaminados com fezes contendo ovos de tênia. Enquanto a teníase é facilmente tratada, a cisticercose é muito mais perigosa porque as larvas podem se encistar no cérebro e nos olhos.
Artigos científicos afirmam ser possível destruir esse parasito com o congelamento da carne crua durante 3 dias em freezer ou 4 dias em congelador.
Outros parasitos
Ao visitar uma fazenda com seu pet, nunca ofereça vísceras de animais recém-abatidos e não permita que ele coma carcaças encontradas no pasto. Cães e gatos que caçam e comem répteis, anfíbios, aves e roedores também podem entrar em contato com vermes. Tome medidas para prevenir esse hábito ou realize exames de fezes (coproparasitológicos) e vermifugue seu peludo mais frequentemente – por exemplo, a cada 3 meses.
Também vale lembrar que nem todo parasito é adquirido por ingestão de alimentos. O protozoário Giardia spp, que causa diarreia com muco e vômitos nos pets, é comumente transmitido por contato com fezes contaminadas ou ingestão de água – infelizmente o cloro adicionado no tratamento da água não destrói esse parasito. O Dipylidium caninum, verme que lembra grãos de arroz se mexendo no cocô do cachorro, é transmitido pela picada de pulgas infectadas.
Recapitulando o tempo de congelamento para cada tipo de carne crua
- Frango e outras aves: não há risco de transmissão de vermes. Há risco de transmissão de algumas bactérias, mas o congelamento não as inativa. Assim sendo, o congelamento antes da oferta de frango não é obrigatório.
- Ruminantes (boi, cordeiro, cabrito) e coelho: congele essas carnes por no mínimo 3 dias em freezer ou 5 dias em congelador.
- Carne suína: se seu freezer atinge -20oC (verifique com o fabricante), congelar a carne crua por 7 dias antes de oferecer será o suficiente. Se tiver apenas um congelador, deixe a carne congelada por 3 semanas para inativar a Trichinella. Ou cozinhe; o cozimento destrói efetivamente qualquer verme.
- Peixe: se estivermos falando de salmão cru selvagem congele por 7 dias antes de oferecer. Do contrário, o congelamento por 24 a 48h dá conta do recado.
Lembrando que se você optar por cozinhar as carnes e vísceras, não é preciso congelar antes. O cozimento destrói eficientemente os vermes e a maioria das bactérias. Só não cozinhe jamais ossos carnudos crus – esses alimentos se tornam perfurantes e difíceis de digerir se cozidos.
Para concluir esse artigo, gostaria de comentar que meus cães comem carnes cruas desde 2008, com inclusão regular de carne suína. Compro, preparo e congelo os alimentos exatamente conforme oriento aqui e minha turma canina nunca apresentou problemas com as bactérias e os vermes descritos acima. Como veterinária atuando exclusivamente com Alimentação Natural acompanho de perto inúmeros pets adeptos de dietas cruas, além de centenas de peludos dos leitores e até hoje não vi um único caso comprovado de parasitose causada por consumo de AN crua preparada da forma correta.