Há 12 anos o artigo “Novas Diretrizes Vacinais para Cães” foi publicado na revista científica “Clínica Veterinária”. A pesquisa, redigida por mim e pelo querido Prof. César Dinóla, Doutor em Microbiologia Veterinária pela USP, se baseou em cerca de 70 publicações científicas de países tão diversos como Brasil, Itália, Israel, Nigéria e Estados Unidos.
O artigo trazia atualizações sobre vacinação canina baseadas em estudos que atestavam a proteção duradoura, muito superior a um ano, conferida pelas vacinas contra doenças virais. Naquela época já havia sido foi proposta a classificação das vacinas em “essenciais” (que todo cão deve tomar) e “não-essenciais” (cuja indicação depende do contexto). Por volta de 2010 apareceu por aqui um recurso bastante útil, a titulação de anticorpos vacinais, exame que verifica os níveis de proteção e nos ajuda a avaliar a necessidade de revacinar.
Vacinar os cães é fundamental. Mas como é o caso com todo imunógeno ou fármaco, há risco de reações adversas. O caminho para uma prática mais segura e ética passa por assimilar as descobertas científicas dos últimos 20-30 anos, evitar aplicações desnecessárias e, sempre que possível, individualizar a conduta vacinal.
Esse é o resumão da nossa publicação que propunha uma revisão de paradigmas. Mas ao contrário do que esperávamos, o artigo não teve repercussão. É 2024 e a maioria dos cães no Brasil segue tomando todos os anos todas as vacinas que o tutor puder pagar.
Duas questões, a meu ver, emperram a imunização de pets de se atualizar por aqui: receio de que protocolos adotados no exterior não sejam aplicáveis à nossa realidade de país em desenvolvimento e falta de informações científicas sem viés comercial.
Aqui vai o apanhado das recomendações publicadas agora em 2024 pela Associação Mundial de Veterinários de Pequenos Animais (WSAVA) para a imunização dos cães. Entidade internacional presidida por uma veterinária brasileira, a Profa. Dra. Mary Marcondes, PhD.
Em suma, precisamos vacinar um número maior de cães, ampliar a cobertura vacinal. E vacinar mais racionalmente os que já têm acesso a vacinas. Confira abaixo as recomendações atualizadas da entidade.
Doenças caninas vacináveis
- Cinomose: acometimento multissistêmico, pode deixar seqüelas neurológicas e oftalmológicas.
- Parvovirose: destrói as vilosidades intestinais e afeta a imunidade. Acomete filhotes.
- Hepatite infecciosa canina: menos comum no Brasil (ou subnotificada?), causa necrose hepática.
- Raiva: zoonose que evolui para coma e paralisia respiratória.
- Leishmaniose visceral canina: de caráter zoonótico, é causada por protozoário e pode afetar órgãos, articulações, olhos e pele.
- Leptospirose: causada por bactéria, afeta rins e fígado. Tem severidade variável e tratamento, mas há risco de seqüela renal.
- Giardíase: causada por protozoário, provoca diarréia. Tem tratamento bastante eficaz.
- Complexo Respiratório Infeccioso Canino: há vacina contra três agentes que causam a gripe canina – a bactéria Bordetella bronchiseptica e os vírus da parainfluenza e adenovírus tipo 2.
- Coronavirose: diarréia viral branda que acomete filhotes com menos de 12 semanas de idade.
- Dermatofitose: lesões de pele com potencial zoonótico causadas pelo fungo Microsporum canis.
Classificação das vacinas pela WSAVA
Essenciais são vacinas que todo cão deve receber algumas vezes na vida: Cinomose, Parvovirose, Hepatite Infecciosa Canina, Leptospirose, onde for endêmica e os sorovares forem conhecidos, e Raiva.
As quatro primeiras estão nas vacinas múltiplas (V5, V8, V10 etc). Seria importante haver a vacina V3 – contra somente as três primeiras doenças – e também vacinas isoladas (somente contra parvo, somente contra cinomose etc.)
Não-essenciais são vacinas indicadas de acordo com a região onde vive e estilo de vida do cão:
Complexo Respiratório Infeccioso Canino (CRIC): alguns componentes estão nas múltiplas e existe uma vacina isolada contra CRIC.
Leishmaniose Visceral Canina: vacina suspensa no Brasil desde 2023.
Não-recomendadas são vacinas irrelevantes ou sem comprovação sólida de eficácia preventiva: coronavirose canina, Microsporum canis e giardíase. A corona está em várias vacinas múltiplas. As outras duas estão em vacinas monovalentes (isoladas).
Protocolo WSAVA para cães filhotes
Cão filhote: 1 dose de vacina contra cinomose, parvovirose e hepatite às 6-8 semanas de vida e então a cada 3-4 semanas até os 4 meses de vida. A WSAVA passou a recomendar um reforço aos 6 meses, ao invés de somente aos 12 meses ou um ano depois.
A vacina antirrábica pode ser aplicada a partir dos 3 meses.
A vacina intranasal contra gripe canina (CRIC), se indicada, pode ser administrada a partir de 6 semanas de vida. A forma injetável dessa vacina pode ser aplicada a partir de 6-8 semanas de vida. São necessárias duas doses, intervaladas a 2-4 semanas.
Protocolo WSAVA para cães adultos
Cão adulto: 1 dose de vacina contra cinomose, parvovirose e hepatite infecciosa canina no máximo a cada 3 anos. (A duração de proteção de vacinas importadas contra essas doenças é de 5 a 9 anos – ou mais.)
1 dose anual de vacina contra leptospirose em se tratando de área endêmica e havendo vacinas capazes de proteger contra os sorovares prevalentes da região. Existe vacina que protege exclusivamente contra leptospirose.
A vacina antirrábica importada protege por 3 a 5 anos, mas nossa legislação, ainda desatualizada, exige o reforço anual. (Nossas vacinas antirrábicas importadas são as mesmas que foram licenciadas para uso trienal nos Estados Unidos.)
A vacina não-essencial – a CRIC (gripe canina) – quando indicada, deve ser reaplicada anualmente por ter duração de proteção mais curta.
Titulação de anticorpos vacinais
Há mais de 10 anos temos o exame sorológico que verifica níveis de anticorpos IgG contra cinomose, parvovirose e hepatite infecciosa canina. Todo resultado igual ou maior que “1” se correlaciona com proteção, pois indica que houve imunoconversão e o desenvolvimento de imunidade celular.
Outras aplicações interessantes do teste:
- Verificar se um filhote de raça considerada mais suscetível a parvo e cinomose (Rottweiler, Labrador) tornou-se imune. Para isso, realize o exame 30 dias após a terceira dose de vacina.
- Identificar cães que geneticamente não respondem a vacinas, não importando quantas doses recebam, e que devem ser mantidos fora de risco.
Não existe o teste de titulação para leptospirose e gripe canina. Poucos laboratórios oferecem de forma corriqueira o exame de titulação para raiva.
Resgatei um cachorro adulto. E agora?
Basta uma única dose de vacina importada que proteja contra cinomose, hepatite infecciosa canina e parvovirose e uma dose de vacina antirrábica importada. Existe risco real do cão contrair leptospirose (frequenta áreas alagadiças, tem contato com roedores)? Dê 2 doses de vacina contra lepto intervaladas a 15 dias. Siga as orientações do quadro “Protocolo WSAVA para cães adultos” no tocante aos reforços.
O que precisa mudar na maneira como vacinamos?
Precisamos ter vacinas monovalentes (que protejam contra uma única doença) e com combinações menores (uma V3) para individualizar a imunização. Nossas vacinas antirrábicas importadas precisam ser licenciadas para uso trienal. Vacinas irrelevantes devem ser retiradas do mercado, como acontece em todos os outros continentes. Precisamos de estudos epidemiológicos, conduzidos por associações independentes, que avaliem as necessidades dos cães e gatos brasileiros quanto à imunização contra leptospirose e hepatite infecciosa canina. Como podemos conseguir isso? Como os países que se atualizaram fizeram: pressionando a indústria farmacêutica e os órgãos legisladores.
Confira na íntegra o boletim de 2024 WSAVA sobre imunização de cães e gatos: https://wsava.org/wp-content/uploads/2024/07/WSAVA-VC-Guidelines-2024-Portuguese.pdf
Sylvia Angélico
Médica Veterinária
pós-graduada em Nutrição Animal
CRMV-SP 29945
Comunicado Cachorro Verde
As informações divulgadas em nossas postagens possuem caráter exclusivamente educativo e não substituem as recomendações do médico-veterinário do seu cão ou gato. Por questões ético-profissionais, a Dra. Sylvia Angélico não pode responder certas dúvidas específicas sobre questões médicas do seu animal ou fazer recomendações para seu pet fora do âmbito de uma consulta personalizada. Protocolos de tratamento devem sempre ser elaborados e acompanhados pelo médico-veterinário de sua confiança.
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